Regressei
a Cabo Verde. Por uns dias, mas que se vão transformando em semanas.
Está-se
bem pela Praia, uma cidade que foi crescendo ao ritmo da maturidade democrática
no período pós-independência (sendo de considerar 1975, de Portugal, e 1980, da
Guiné) onde se respira uma transição de culturas e por onde se entra numa porta
especial da africanidade.
Entretanto,
escrevo estas palavras do Mindelo, na ilha de S. Vicente, um lugar especial, a
terra de Cesária Évora, que agora tem o seu nome estampado no aeroporto, e
merecidamente. Disseram-me, aqui, que o seu funeral foi uma das manifestações
populares mais memoráveis de todos os tempos.
É
fim de tarde e do meu poiso de escriba errante, observo o monte cara, de uma
figura de corpo deitado, dormindo em silêncio o sono profundo do tempo, e
iluminado pelos raios enfraquecidos de um pôr do sol que brinca com as nuvens
escuras que abraçam a ilha de Santo Antão.
Este
fim de tarde coloca-me num outro lugar. Em Díli, na praia branca. O que hoje
ouvi, numa conferência de um académico cabo-verdiano, trouxe-me de volta Timor.
Da
última vez que por lá andei, frequentei, na referida praia, com um sol vermelho
mergulhando no mar de ondas douradas, o restaurante chamado morabeza.
E esse
académico falou precisamente sobre a identidade singular dos cabo-verdianos,
que definiu como sendo um processo histórico de encontrão, ou seja, de
adaptação constante a uma nova realidade, de enorme dureza e cheia de
dificuldades climatéricas, geográficas e económicas. Pela sua natureza histórica,
o povo cabo-verdiano é uma síntese do quase impossível: o de querer estar
naquilo que é a insularidade e o de querer partir para outros mundos, como se
estivesse em permanente viagem.
Tal
identidade, que é plural e se alimenta da diáspora, tem uma palavra que é
central na sua construção: morabeza.
Agora
compreendo por que razão o tal restaurante, em Díli, pertence a um
cabo-verdiano e de que modo morabeza tem
um sentido diferente do que a palavra saudade.
É uma saudade de contentamento, não de tristeza
e de melancolia e de solidão interior.
Não se volta para o interior do sujeito, mas para o seu exterior, sendo
algo que se cultiva na lógica de uma pertença a um espaço, que deixou de
existir e que apenas é feito de memórias e tradições. Morabeza é o pensar positivo de um destino, é uma palavra viajante,
sem destino algum, alimentando-se dos dias que passam e que se consomem no
tempo. Morabeza é o que se recorda
com alegria e com satisfação, sem pressentimentos negativos e acreditando num
futuro que ainda é possível. Por isso, esta palavra é tão utilizada na
caraterização da identidade dos cabo-verdianos, já que nas veias não lhe corre
o sangue da tristeza mas, pelo contrário, a musicalidade africana.
Bem,
preciso de terminar esta crónica, pois espera-me o regresso à cidade da Praia
levando na mochila que transporto um bocadinho de morabeza, pois do Mindelo há
imagens que ficam para sempre e das quais nos vamos tentando recordar. E uma
imagem que levo comigo é a da noite das “bruxinhas”, vestidas eroticamente de preto,
inundando uma das baías mais bonitas que já conheci.
Sim,
Mindelo é especial. É morabeza.