novembro 07, 2012


Regressei a Cabo Verde. Por uns dias, mas que se vão transformando em semanas.

Está-se bem pela Praia, uma cidade que foi crescendo ao ritmo da maturidade democrática no período pós-independência (sendo de considerar 1975, de Portugal, e 1980, da Guiné) onde se respira uma transição de culturas e por onde se entra numa porta especial da africanidade.

Entretanto, escrevo estas palavras do Mindelo, na ilha de S. Vicente, um lugar especial, a terra de Cesária Évora, que agora tem o seu nome estampado no aeroporto, e merecidamente. Disseram-me, aqui, que o seu funeral foi uma das manifestações populares mais memoráveis de todos os tempos.

É fim de tarde e do meu poiso de escriba errante, observo o monte cara, de uma figura de corpo deitado, dormindo em silêncio o sono profundo do tempo, e iluminado pelos raios enfraquecidos de um pôr do sol que brinca com as nuvens escuras que abraçam a ilha de Santo Antão.

Este fim de tarde coloca-me num outro lugar. Em Díli, na praia branca. O que hoje ouvi, numa conferência de um académico cabo-verdiano, trouxe-me de volta Timor.

Da última vez que por lá andei, frequentei, na referida praia, com um sol vermelho mergulhando no mar de ondas douradas, o restaurante chamado morabeza.

E esse académico falou precisamente sobre a identidade singular dos cabo-verdianos, que definiu como sendo um processo histórico de encontrão, ou seja, de adaptação constante a uma nova realidade, de enorme dureza e cheia de dificuldades climatéricas, geográficas e económicas. Pela sua natureza histórica, o povo cabo-verdiano é uma síntese do quase impossível: o de querer estar naquilo que é a insularidade e o de querer partir para outros mundos, como se estivesse em permanente viagem.

Tal identidade, que é plural e se alimenta da diáspora, tem uma palavra que é central na sua construção: morabeza.

Agora compreendo por que razão o tal restaurante, em Díli, pertence a um cabo-verdiano e de que modo morabeza tem um sentido diferente do que a palavra saudade.

 É uma saudade de contentamento, não de tristeza e de melancolia e de solidão interior.  Não se volta para o interior do sujeito, mas para o seu exterior, sendo algo que se cultiva na lógica de uma pertença a um espaço, que deixou de existir e que apenas é feito de memórias e tradições. Morabeza é o pensar positivo de um destino, é uma palavra viajante, sem destino algum, alimentando-se dos dias que passam e que se consomem no tempo. Morabeza é o que se recorda com alegria e com satisfação, sem pressentimentos negativos e acreditando num futuro que ainda é possível. Por isso, esta palavra é tão utilizada na caraterização da identidade dos cabo-verdianos, já que nas veias não lhe corre o sangue da tristeza mas, pelo contrário, a musicalidade africana.  

Bem, preciso de terminar esta crónica, pois espera-me o regresso à cidade da Praia levando na mochila que transporto um bocadinho de morabeza, pois do Mindelo há imagens que ficam para sempre e das quais nos vamos tentando recordar. E uma imagem que levo comigo é a da noite das “bruxinhas”, vestidas eroticamente de preto, inundando uma das baías mais bonitas que já conheci.

Sim, Mindelo é especial. É morabeza.