janeiro 24, 2011

Frei Redento da Cruz (1589-1638)

Sendo bastante conhecido pelos seus méritos de escritor, Narciso Alves da Cunha destaca-se por ser o autor da monografia “No Alto-Minho-Paredes de Coura”, justamente considerada a jóia da coroa no quadro da história local.
Além disso, e não contando com a escrita dos seus discursos no Senado da 1ª República, ao qual conferiu a sua sageza de juiz e sacerdote, escreveu, em 1907, o opúsculo religioso “Resumo da Vida e Martírio do B. M. Redento da Cruz, Carmelita, natural de Paredes de Coura”.
Depois de uma procura deste livro, descobri dois exemplares: um na Biblioteca Nacional, em Lisboa; outro na biblioteca da Escola Secundária Santa Maria Maior, de Viana do Castelo, no legado de Júlio de Lemos, aliás um dos grandes amigos de Narciso Alves da Cunha.
Com a ajuda preciosa de um courense – o Doutor Júlio Pedrosa – tive acesso à biblioteca de Júlio de Lemos, prontamente disponibilizada pelo Director da Escola.
Da leitura nota-se que Narciso Alves da Cunha manteve sempre o seu lado de sacerdote, apesar de não ter sido responsável por uma paróquia, tendo assumido funções religiosas na Capela da Universidade de Coimbra e nas Confrarias do Espírito Santo e da Nª Srª do Livramento.
Depois de ter obtido a autorização do Bispo de Braga para a sua publicação, e quem ler “atenta e devotadamente a vida do referido mártir”, tem “a indulgência de 100 dias”, começa do seguinte modo a sua escrita:
“Entre as muitas terras da Província do Minho, reino de Portugal, encontra-se uma, ao norte, situada emtre acidentados montes, cuja origem se perde na noite dos tempos: é Paredes de Coura.
Fértil nos seus vales e abundante de cereais, não o tem sido menos em varões ilustres, quer na arte da guerrra, quer em virtudes cívicas e religiosas, e até em santidade.
Entre estes, ocupa lugar proeminente aquele que, no século, foi conhecido pelo nome de Tomás Rodrigues da Cunha, e na Ordem dos Carmelitas Descalços por Fr. Redento da Cruz. Nasceu na freguesia de Cunha, lugar de Lizouros, deste concelho de Paredes de Coura, e foi baptizado em 15 de Março de 1589, na de Paredes”.
Com origem numa nobilíssima linhagem, com outros membros ilustres “nas esferas da ciência”, e “na qualidade, pois, de militar e contando apenas dezanove anos, seguia para a Índia em 1617, acompanhando o conde do Redondo - D. João Coutinho – prestando ali bons serviços o nosso Tomás Rodrigues da Cunha. Não se deixou, porém, embriagar com as grandezas da terra, nem com as vaidosas honrarias humanas, que cedo o procuraram, pois não tardou que o nosso ilustre conterrâneo fosse nomeado capitão da praça de Meliapor, cargo que o impunha à consideração pública e favor do Rei. Por isso, muito novo ainda, depôs a sua leal espada, despiu a nobre farda de soldado português e, calçando as sandálias dos Carmelitas Descalços na cidade de Tata – império do Grão Mongol – trocou o nome de Tomás pelo de Redento da Cruz”.
Depois de ter estado em vários conventos (Data, Diu e Goa), onde desempenhou cargos humildes (sacristão e porteiro, por exemplo), Fr. Redento da Cruz integou uma embaixada ao Rei de Achém (actualmente, a terra denomina-se Aceh, situada na ilha de Sumatra, pertencente à Indonésia) com vista ao estreitamento de relações de amizade, isto é, de comércio de especiarias.
Porém, e narra Narciso Alves da Cunha que por força dos interesses dos Holandeses, a comitiva em nome do vice-rei da Índia foi recebida com grande animosidade, tendo muitos deles sido submetidos a trabalhos forçados. Fr. Redento da Cruz tornou-se guardador de búfalos, o que não evitou, já que se recusou a renunciar à religião cristã, de ser executado na praia, juntamente com os outros portugueses, a “28 ou 29 de Novembro de 1638”.

janeiro 15, 2011

Narciso Alves da Cunha

Texto (da autoria de Luís Dantas) retirado do endereço
http://luisdantas.skyrock.com/9.html

Narciso Cândido Alves da Cunha nasceu na freguesia de Formariz, Paredes de Coura, a 5 de Setembro de 1851. Estudou em Braga, no liceu e no seminário. Mais tarde, em Coimbra, foi ordenado presbítero (1878) e concluiu o curso de direito (1881). Ocupou diversos cargos: Conservador do Registo Predial da comarca de Paredes de Coura (1885-1901), Magistrado em Bragança (1901-1908) e no Funchal (1910-1911), Administrador do concelho e Presidente da Câmara Municipal de Paredes de Coura (1908-1911), Deputado e Senador (1911-1913). Foi um «homem de saber, de falar e de escrever» (1). A sua obra «No Alto Minho – Paredes de Coura», editada em 1909, não é só um reflexo do carinho consagrado ao património da sua terra e da sua gente, mas também o repositório de vastos conhecimentos no domínio da história, da arqueologia, da lexicologia e da etnografia. Em Agosto de 1905, foi anfitrião e companheiro de Leite de Vasconcelos (1858-1941) na exploração dos dólmenes na Serra da Boulhosa.
Eleito deputado por Ponte de Lima (Círculo n.º 2), nas eleições de 28 de Maio para as Constituintes de 1911, representou com empenho, afinco e probidade, os interesses da região minhota. A sua acção política esteve sempre relacionada com as grandes causas. Na Câmara do Senado, na sessão n.º 9 do dia 14 de Dezembro de 1911, chamou a atenção para os problemas da instrução primária e popular: os maus métodos de aprendizagem; a existência de salas de aulas em casas particulares com vários meses de renda em atraso; a falta de escolas públicas e os edifícios degradados: «à escola da vila de Ponte de Lima, concelho muito populoso e muito frequentado por forasteiros, ruiu lhe o tecto, há tempo, não tendo havido desgraça porque os alunos não foram atingidos pelos destroços.
Doutra escola que conheço, a escola de Ferreira, no concelho de Paredes de Coura, diz o próprio professor que quando chove, é preciso abrir os chapéus-de-chuva para se abrigarem da água.» (2)
Num dos seus discursos sobre o mesmo tema, o tribuno apresentou um projecto de lei para a «criação duma escola agrícola, prática, móvel, pelo sistema das escolas conhecidas pelo nome de Maria Cristina (3), e que tem dado óptimos resultados.» (4) Em boa hora, estas escolas tinham já triunfado em várias localidades: Rio Tinto (1901), Vila Nova de Famalicão (1902), Guimarães (1903), Barcelos (1904), Santa Marta, Viana do Castelo (1905), Braga (1906), Arcos de Valdevez (1907), Ponte de Lima (1908), Penafiel, Amarante (1909) e Marco de Canavezes (1911). Foram surgindo outras também de iniciativa individual, na mesma ocasião, com o nome dos seus patronos: «Comércio do Porto» (cujo título foi escolhido pelo Conde de S. Cosme do Vale, Famalicão, 1903); «Conde de Sucena» (Borralha, Águeda (1904), Azeméis (1905), Ovar e Estarreja em 1907); «José Bessa» (Barcelos, 1905); «Alves Teixeira» (Vidago, 1907); «Condessa de Sucena» (Águeda, 1907); «Conde de Agrolongo» (Guimarães, 1909) e «Rodrigues de Morais» (Ponte de Lima, 1909).
Alves da Cunha tinha ali a palavra límpida, larga visão do futuro - a emoção também o dominava - vontade de compartilhar a vida digna com os homens, as mulheres e as crianças do mundo rural, com «as massas anónimas, que vivem do campo, que vivem da terra e para a terra, que mourejam todo o dia, hora a hora, desde manhã até de noite, debruçadas sobre a mesma terra para lhe pedirem pão para comer e até para o dar ao Estado. Estas classes considero as eu como o verdadeiro nervo da Nação (Apoiados), e por isso hão de permitir me que lhes diga que elas têm sido, precisamente, as mais esquecidas. (...)
Esse povo, ou essa classe do povo, donde venho e com o qual me criei, cujas dores tenho auscultado desde há muitos anos, a cujas festas tenho assistido e com quem ainda há pouco privei perto de quatro anos para lhe estudar e registar a linguagem (...), é de índole naturalmente boa, sofredora e ordeira. (Apoiados).
O povo do norte, e quando digo norte não me refiro a esta ou aquela província determinada, mas a uma grande parte, senão à maior parte do país, é essencialmente trabalhador, respeitador das autoridades, pontual no cumprimento dos seus contratos e verdadeiramente amorável.
Haja vista o que se passa no Alto Minho, naquelas montanhas da Peneda, Soajo e Castro Laboreiro, quando algum forasteiro (e são bem poucos os que por lá aparecem) se abeira do tugúrio do mais pobre dos habitantes que estão encerrados nas ravinas daqueles montes: o hóspede é, para eles, uma pessoa sagrada e é tratado com o melhor que há em casa que, na maior parte dos casos, é pão de centeio e leite.» (5)
Em Abril de 1912, defendeu ainda com entusiasmo «um projecto de alta importância regional, e até nacional» (6): os caminhos-de-ferro do Alto Minho.
A sua voz lúcida, vibrante e firme deixou se de ouvir, mas permanece ainda hoje o eco retumbante dos seus ideais luminosos.
O grande homem público caiu gravemente doente devido a uma pneumonia, e morreu em Lisboa, na casa da Travessa da Palmeira, 64, 2.º andar, no dia 15 de Janeiro de 1913.


NOTAS

(1) Jorge Fernandes Alves, in Narciso Alves da Cunha, Perspectivas do Alto Minho, Intervenções Parlamentares, Edição da Câmara Municipal de Paredes de Coura, Paredes de Coura, 1997, pg. 9
(2) Narciso Alves da Cunha, Perspectivas do Alto Minho, Intervenções Parlamentares, Edição da Câmara Municipal de Paredes de Coura, Paredes de Coura, 1997, pp. 33-34
(3) «Tendo o Comércio do Porto preconizado a ideia de que para o engrandecimento agrícola em Portugal se carece não de altas escolas agrícolas, mas sim de ensino posto ao alcance dos mais modestos lavradores, um devotado filho do Porto, em cujo carácter parece reviver o civismo da velha raça portuguesa, leu no Brasil essa afirmação do jornal portuense e, no meio do labutar incessante da sua prodigiosa actividade de comerciante, lembrou se de proporcionar ao próprio Comércio do Porto os recursos pecuniários para a realização do pensamento de que fora apóstolo.
(...)
Interrogado o criador dessas mensageiras do futuro agrícola de Portugal sobre o título que deveria dar se às escolas, respondeu muito singelamente: «Chamem se «Maria Cristina» - o nome da minha mulher.»
Bento Carqueja, Escolas Móveis Agrícolas, Ilustração Portuguesa, n.º 110, Lisboa, 30 de Março de 1908
(4) Narciso Alves da Cunha, Perspectivas do Alto Minho, Intervenções Parlamentares, Edição da Câmara Municipal de Paredes de Coura, Paredes de Coura, 1997, pg. 35
(5) Idem, idem, pg. 36
(6) Idem, idem, pg.127

Casimiro Rodrigues de Sá (Abade de Padornelo e de Bico)

Transcrição do texto (da autoria de Luís Dantas) inserido no endereço
http://luisdantas.skyrock.com/10.html

nasceu em S. Pedro de Fins de Parada, Paredes de Coura, em 24 de Abril de 1873. Estudou no Seminário de Braga, concluindo ali o curso de Teologia (1894). Fundou e dirigiu o periódico Clamor do Povo, deixando colaboração dispersa no Jornal de Coura, Liberdade de Coura, Notícias de Coura, Voz de Coura, Melgacense, Valenciano, Palavra, Minho, Ecos de Vez, Primeiro de Janeiro, Voz Pública, O Povo, Defesa, Voz de Ourém, Voz de Valença, Diário Portuense, Época, Intransigente e Debate. Na sua terra, foi Professor da Escola Primária, Pároco de Vascões, Prior de Parada, Abade de Santa Maria de Padornelo, Presidente da Câmara Municipal e Administrador do Concelho.
Deputado eleito por Viana do Castelo em 1911 e 1915, assinou o projecto de decreto a favor da construção e exploração dos caminhos-de-ferro do Alto Minho.
Ao longo de uma actividade prática de homem político, a intervenção parlamentar e o seu trabalho dedicado e fecundo revelam de maneira bastante característica o espírito de paz e de moderação contra as ideias radicais. Começou a inclinar se, desde muito cedo, em favor do grupo liderado por António José de Almeida. Esteve até com ele, em 1912, na criação do Partido Evolucionista., que se afirmava liberal e progressista. Mais tarde, em 1917, é um dos dissidentes que, com o Lente de Medicina da Universidade de Lisboa António Caetano Egas Moniz, o Médico e Capitão-de-fragata Alexandre de Vasconcelos e Sá, General José Augusto Simas Machado e o Capitão João Tamagnini Barbosa, vai constituir o Partido Centrista Republicano.
O Padre Casimiro Rodrigues de Sá moveu se sempre em busca do compromisso e das leis harmoniosas inspiradas na vontade popular. Fez várias moções e propostas sobre quase todas as grandes e pequenas questões nacionais. Das suas peças oratórias, a mais marcante e a que teve maior êxito aparece relacionada com as Confrarias no âmbito de Lei da Separação da Igreja do Estado: «Eu lamento, Sr. Presidente, que um decreto da importância deste que agora está em debate, venha para a Câmara parcelarmente, de forma a começar a sua apreciação a ser feita a retalhos; porque, a meu ver, sobre um assunto desta momentosa gravidade, sobre uma lei de tal magnitude, como é a lei da Separação da Igreja do Estado, devia incidir um estudo de conjunto, que sistematizasse princípios e formulasse um plano, e que sobretudo se baseasse nas modernas concepções jurídicas, sobre as quais os tratadistas formulam e estabelecem a teoria das relações que devem presidir ao regime de separação entre o Estado e a Igreja, entre o poder público e as diversas confissões religiosas. Por isso, eu não entro de boa vontade no debate; por motivos especiais, porém, tenho de tomar parte nele; de mais a mais, versando ele sobre modificações a artigos da lei de Separação, que particularmente interessam corporações populares da mais valiosa importância social.
Nós continuamos, Sr. Presidente, a ser o país da papelada, dos processos dilatórios e das arbitrariedades governativas.
Nós, como poucas nações do mundo, temos um volume de legislação enormíssimo. Mas, a nossa legislação nasce mais do cérebro dos legisladores, onde fora do exame atento das condições do meio, aridamente germina, do que da vontade popular, que é o seu termo de destino e a força consciente que há-de cumprir as suas disposições. Ora, um país governado por muitas leis, já há muitos séculos que um grande espírito jurídico e um grande talento oratório o definiu e julgou em sentencia, que nada tem de lisonjeira, ou mesmo de agradável. Eu vou repetir aqui, em latim, as palavras de Cícero, já porque a sua nativa pureza lhes deixa toda a sua energia condenatória, já porque elas devem soar bem nesta sala, onde a todo o momento se fala no statu que ante e também algumas no ax aequo et bono. São estas: plurimae leges, péssima Republica.
Também um membro do Parlamento inglês colocou em situação inferior e fraca aquelas nações, que legislam sem ouvir a vontade da colectividade, isto é, empiricamente e ao acaso de impulsos ocorrentes, pois melhor governadas considera aquelas que procedem de modo inverso.
Refiro-me ao ilustre homem de Estado e alta notabilidade jurídica, Lord Rosebery, que não há muito, numa das sessões anuais da Sociedade de Legislação Comparada, proferiu estas memoráveis palavras, portadoras de profundo pensamento: «O Estado mais próspero é o que efectua o seu desenvolvimento, mercê do carácter e da acção dos cidadãos, com o mínimo de assistência do legislador.»
Entre nós a acção legislativa não obedece ao preceito concepcional de Rosebery; fazem-se leis a esmo, atiram-se para o meio da sociedade, que não as inspirou, e aguarda se, numa expectativa calculada, a maneira como serão recebidas pela generalidade dos cidadãos...
É cómodo, dispensa estudo, observação, e saber experimentado; mas não deixa também de ser inábil e de ser sumamente desastrado.
E é em assuntos do carácter deste que se discute, assuntos que tem de ser atacados de frente, que tem de ser por fim resolvidos de harmonia com a vontade nacional, que até agora em tal não foi vista nem achada, que precisamente se procede de maneira contrária aos usuais processos de estudar todas as questões sociais.
Nos assuntos que dizem respeito à indústria, ouvem-se os industriais; nos que respeitam ao comércio, ouvem-se os comerciantes; nos relativos à agricultura, ouvem-se os agricultores; mas isso, que se faz em toda a parte onde os homens de Estado procuram seriamente que a legislação traduza o espírito nacional, e que entre nós também em parte se tem feito, ninguém procurou que dalguma maneira se esclarecesse um dos mais difíceis problemas que ao Governo da República cumpria resolver, qual era o de estabelecer em bases justas e liberais o sistema de relações entre o Estado e a religião, num regime separatista.
Havendo para os cidadãos portugueses um statu que ante, pelo menos tão respeitável como o que continua a vigorar para os estrangeiros, que estão numa situação de manifesta e excepcional superioridade; havendo duas partes, que por legítimas concordatas, estavam ligadas por contratos de natureza vigorosamente bilateral, em que, portanto, os deveres e os direitos eram mútuos, tudo foi esquecido, e a aliança jurídica foi desfeita pela intervenção duma só parte, que propositalmente excluiu a outra dessa violenta rescisão.
É por isso que o decreto, que se discute, veio à prática cheio de defeitos, e se tornou motivo para descontentamentos, de indignações reconhecidamente legítimas e de justas reprovações quase gerais.
Vozes: - Não apoiado.
O Orador: - Parece-me que sei o que digo; e como não é a lei da Separação, que se está discutindo e, sim, só alguns artigos dela, apenas na apreciação desses artigos me demorarei, renunciando por agora à tarefa de discutir o diploma na sua significação total.
Uma voz: - É pena.
O Orador: - Mas eu não tenho pena de que V. Exa. fique com os seus desejos insatisfeitos, e não lhe faço a vontade nesta ocasião.
Como disse, tenho de falar neste assunto, principalmente porque, quando aqui há tempos, em princípios de Janeiro, se a minha memória bem se recorda, foram apresentadas, nesta Câmara, por mim, em sessão e deste lugar, representações de oitenta e tantas confrarias, que pediam, na parte que se ocupa dessas corporações, fosse suspensa a execução do decreto de 20 de Abril de 1911, até que o Parlamento o tivesse revisto, por serem incomportáveis os encargos para elas criados, o Sr. Ministro da Justiça, esquecido talvez do preceito constitucional que garante o direito de petição amplamente, recebeu esses documentos por uma forma mais que estranha e manifestamente indelicado, e hostil.
Havendo o pleno direito de pedir e sendo aquelas representações formuladas em termos educados e correctos, de forma alguma podiam ter da parte do Ministro semelhante acolhimento, que, de facto, muito me surpreendeu.
O Sr. Ministro da Justiça disse nessa ocasião, afirmando eu e as representações que as confrarias não podiam ceder para instrução e beneficência dois terços das suas receitas totais, que eu e os signatários dos documentos citados não tínhamos lido a lei da Separação, ou que não a soubemos ler; enfim, que não a entendíamos.
Ora, S. Exa. já tinha publicado uma portaria aí por meados de Novembro de 1911, a propósito de representações de confrarias de Lisboa, que era precisamente da minha opinião. Pelo menos essa portaria traz a sua assinatura, e, no seu final, diz o seguinte: O Governo da República Portuguesa... há por bem determinar... se considerem subsistentes as... irmandades e confrarias... que assuma a obrigação... de apresentarem oportunamente o orçamento respectivo, organizado dentro dos limites do artigo 38.° da lei de Separação, de 20 de Abril de 1911.
Ora o artigo 38.° preceitua que essas corporações cedam dois terços dos seus rendimentos brutos para os fins acima nomeados. Em Janeiro o Sr. Ministro da Justiça mandava-me para o artigo 32.° que se refere unicamente às corporações cultuais. Tinha então lido pouco a lei.
O Governador civil do Porto, que talvez saiba ler leis, publicou, nessa ocasião, o seguinte, num edital dirigido a todas as corporações da natureza das que me venho ocupando:
"2.° As verbas destinadas a actos cultuais não podem exceder o limite fixado no artigo 38 ° da lei de Separação do Estado das Igrejas, para verificação do que os orçamentos virão acompanhados, alem dos outros devidos documentos, dum mapa das despesas efectuadas nos últimos cinco anos".
Esse governador civil, bacharel formado em direito, juiz com bons créditos e jurisconsulto de nome respeitado, também lê e entende a lei como eu e como os signatários das representações que por minha mão foram enviadas para a mesa desta Câmara.
Parece, pois, que a minha hermenêutica não era errada, e que o mesmo se não pode dizer da interpretação que o Sr. Ministro da Justiça pretendeu dar a alguns artigos duma lei que S. Exa. supõe conhecer melhor do que ninguém.
Exposta por forma, que julgo peremptória, a defesa do meu antigo parecer, continuo a apreciar a situação das confrarias perante a lei de Separação.
Apresentei as representações das confrarias não somente por comprazer com os signatários delas, mas sobretudo porque eu pensava em plena concordância com o seu modo de ver sobre esta importantíssima questão.
Quero dizer: eu, de harmonia com as considerações das representações aqui trazidas e defendidas, entendia que a verba de dois terços, tirada das receitas totais das confrarias para beneficência e instrução, era exageradíssima.
Hoje, ainda continuo a sustentar a mesma opinião, pois a quantia apontada é manifestamente excessiva e, propriamente, envolve a ruína das corporações sobre que vai pesar.
As corporações cultuais é que tem unicamente de concorrer para os fins indicados com um terço. Esta disposição da lei também é pelo menos absurda e contraditória, pois que a lei diz que da soma que os fiéis devem para fins cultuais um terço será aplicado a beneficência e instrução.
Parece lógico que o que os fiéis duma religião dão e destinam a fins cultuais deve exclusivamente ser empregado nesses fins. Dar-lhe aplicação diversa é inverter e contrariar violentamente a vontade e as intenções dos dadores.
O Sr. Germano Martins: - V. Exa. acha que dizer missas é melhor do que fazer obras de caridade?
O Orador: - Eu não acho nada, nem ponho essas cousas em paralelo, que afirmo é que o que cada um dá voluntariamente para ter aplicação determinada, por ninguém deve ser desviado do seu natural destino. Por que não se lançam idênticas imposições sobre as diferentes associações, como, por exemplo, às de recreio e divertimentos?
O Sr. Germano Martins: - V. Exa. compara as sociedades de recreio às missas!
O Orador: - Eu estou falando sério e não admito troças. De resto, eu não fiz ainda comparações nenhumas, sendo portanto completamente descabida a reflexão de V. Exa.
O Sr. Germano Martins: - V. Exa. é que está fazendo troça.
O Orador: - As confrarias são antigas na Igreja, e tem carácter idêntico às de outras associações, pelo que respeita a direitos. Os irmãos são os seus membros e sócios, que as sustentam com as suas cotas e trabalho, e que portanto devem ter a faculdade plena de as administrar autonomamente, pois governam o que é seu.
As confrarias são antiquíssimas, e desde o princípio dispensaram os maiores cuidados à instrução e à assistência, e não só à sustentação do culto, sendo por conseguinte verdadeiras associações de socorro mútuo.
Hoje continuam as suas antigas e humanitárias tradições, que são de reconhecida benemerência social, não sendo as portuguesas as que menos serviços tem prestado, com verdadeira dedicação e até com grandes sacrifícios de muitos que as administram.
O que elas, porém, de forma alguma podem é ceder a quantia fabulosamente exagerada, que a lei de Separação lhes exige, sem atenção pelas circunstâncias boas ou precárias de cada uma dessas corporações.
Para a beneficência pública todas as confrarias tem concorrido com verbas variáveis segundo as suas condições de riqueza; mas nenhum direito autoriza os poderes públicos a atentar contra, a sua própria existência.
Tal atentado implicaria até um grande mal social. As confrarias têm uma função altamente económica, poderosamente equilibradora, grandemente moralizadora nas províncias do norte; são, por assim dizer, a única barreira eficaz que, em vigor, se opõe à usura e a não deixa medrar á solta e à vontade, por emprestarem a juro módico e não trazerem os seus capitais em contínua e arbitrária mudança de devedores.
Essas corporações devem ser mantidas, pois que elas são verdadeiras associações, em que os fiéis entram com a sua cota, e por consequência, não é justo que se lhes vá arrancar o dinheiro que eles lá têm, e que por todos os títulos constitui propriedade sua.
O facto de ser desviado o seu rendimento para fins diferentes daqueles para os quais foram instituídas e por causa dos quais os fiéis as sustentam, dá em resultado o retraimento por parte do povo em satisfazer as suas anuidades, e por tal motivo confrarias cujos rendimentos são na sua maior parte provenientes dessa fonte, vem diminuir assustadoramente as suas receitas.
Uma importante confraria do meu concelho tinha receita dessa proveniência, do valor de mais de 3:000$000 réis. Este ano, devido ao receio da nova aplicação dos rendimentos, diminuíram estes em cerca de 1:000$000 réis.
Quero dizer, o rendimento desta confraria sai quase todo das anuidades dos irmãos, e estes, como dão o seu dinheiro para um fim e vêem que a lei lhes quer dar outro, deixam de pagar. Este facto redunda sobretudo em prejuízo da beneficência, como é natural e óbvio. No caso referido a instituição que sofre é o hospital do meu concelho, que recebe a décima parte da receita bruta dessa confraria, e faltando as anuidades dos irmãos, essa verba fica reduzidíssima, se não anulada, porque o capital da confraria talvez não produza soma igual à décima parte da receita que até agora percebia.
O Sr. Germano Martins: - Mas onde é que está na lei que ela deixe de mandar o dinheiro para o Hospital?
O Orador: - Tenham elas embora a faculdade de aplicar para a beneficência a quantia a ela destinada como entenderem, o que na lei não está claramente definido, de modo algum podem distribuir verbas para quaisquer fins, desde que não as tenham, por os fiéis não entrarem com as anuidades. Isto é fácil, isto já está a suceder; e os irmãos, não tendo outro meio para se eximirem a essa obrigação, demitem-se, resolução que ninguém tem direito a impedir.
Demais as confrarias, cedendo dois terços das suas receitas totais, não ficam com meios de custear de forma alguma os seus encargos próprios, isto é, aqueles para cumprimento dos quais precisamente se criaram.
Seria simplesmente uma violência enorme levar essas corporações a uma tal situação, pois que isso constituiria a negação absoluta dos direitos dos seus membros e sustentadores, que são os irmãos.
Estes é que tem o direito de dispor dos recursos que são mais seus do que propriamente das confrarias, os quais não são mais que as colectividades que os representam.
Com um terço dos rendimentos que poderão fazer as confrarias? Pagando dessa quantia reduzidíssima as contribuições ao Estado, as despesas com a conservação dos seus edifícios, a organização de orçamentos e contas e a aprovação e emolumentos destas, desejo eu saber quanto lhes ficará para as suas despesas próprias. Para muitas o insuficiente, e para a maior parte nada, pois que esse terço nem para as despesas enumeradas chegará. E devo ainda lembrar que grande parte dos capitais de confrarias estão onerados para fins especiais por disposições testamentárias e outros documentos legais, que de forma alguma será possível deixar de respeitar.
O que a justiça impõe é que, pelo menos, a soma das despesas acima indicadas, seja tirada dos rendimentos totais das confrarias, e que de resto saiam os dois terços para assistência e instrução.
Proceder doutro modo é contrariar a equidade e a mais elementar justiça, segundo me parece inteiramente claro.
Sim, as determinações dos que morreram e já não podem alterar as suas últimas vontades, para nós devem ser sagradas, e por isso o nosso respeito por elas precisa ser absoluto, acatante, indiscutível.
A nossa fúria de destruição de instituições do passado e a nossa cega tarefa de tudo alterar, não podem ir até o ponto de violar as determinações dos mortos, que valem mais do que as dos vivos, pois que, segundo um escritor francês, "os mortos mandam, e tem direito a ser obedecidos, quer pelo número, que é superior ao dos vivos, quer pela herança que nos legaram, a qual é o antecedente impulsor de todos os subsequentes progressos.»
Eu conheço factos da mais alta gravidade, que estão a concorrer para a ruína das confrarias e a constituir grandes prejuízos para as instituições que elas podem auxiliar. Pessoas que legavam quantias importantes a confrarias, tem revogado os seus testamentos, por verem que o Estado, numa hora em que se proclama a descentralização, se intromete em demasia na administração destas corporações, eminentemente populares e genuinamente portuguesas.
Dalguém sei eu também que deixava cerca de quarenta contos de réis a uma Misericórdia e que revogou o seu testamento, apenas viu que uma comissão a foi administrar, substituindo arbitrariamente a mesa que os irmãos haviam elegido legitimamente.
De maneira, Sr. Presidente, que é preciso que estas questões sejam tratadas muito reflectidamente, se não quisermos ver que as medidas tomadas nos levam a resultados abertamente opostos àqueles que se intentam e buscam.
De resto, da acção desta Câmara e do Estado nada deve sair que ataque a justiça ou estabeleça luta com os princípios liberais, por todos aceites.
O que se está a dar com as confrarias da minha terra, há-de dar-se em muitas outras.
Este ano houve 1:000$000 réis de diminuição no rendimento proveniente das anuidades dos irmãos; nos anos subsequentes essa diminuição agravar-se há.
Por isso desejava que se fizesse um estudo mais aturado e cuidadoso da situação e condições especiais das confrarias, e se resolvesse, aquilo que fosse bom e justo, de forma que chegássemos a um entendimento claro, definido e razoável, que não prejudicasse excessivamente as confrarias nem as instituições de beneficência.
Sobre as outras partes da proposta nada mais tenho a dizer. A forma como está redigido o artigo deixa os pensionistas em situação impossível, porque o exercício das ordens não depende unicamente da vontade deles: podem ser privados, suspensos pelos seus superiores e, portanto, não exercem as funções e daí tem irremediavelmente de deixar de receber as pensões. Uma tal situação nem é justa nem sustentável.
Sobre as cultuais nada tenho a dizer também, mesmo porque é provável que jamais se constituam e também porque a lei não dispõe obrigatoriamente que elas sejam criadas, para que o culto subsista.» (1) Pronunciou se também sobre a Supressão dos Administradores de Concelho. Nessas palavras tão vivas, fulgurantes de inteligência, não expunha apenas o seu «modo de ver», mas revolvia a história: «esta discussão, aliás importante porque respeita a um dos problemas mais graves da nossa vida administrativa, já nos tem levado muito tempo; por esse motivo não venho fazer um discurso com largas considerações, mas apresentar apenas o meu modo de ver sobre este ponto definido da questão que se debate. Quero simplesmente dizer que nem concordo com a conservação dos administradores de concelho, tais como hoje existem, nem também concordo com a proposta apresentada no projecto do Código Administrativo.
Eu, Sr. Presidente, não tenho pelos administradores de concelho aquela antipatia, aquele medo, aquele grande receio, de que tenho ouvido falar os seus adversários nesta Câmara.
Eu conheço as palavras duras que sobre os administradores de concelho escreveu Almeida Grarret em 1852.
Chamava-lhes criaturas anfíbias, criaturas sempre inclinadas ao mal, nunca ao bem, e sobretudo um empecilho grande à nossa vida social, porque andavam em contínuos conflitos com os delegados do procurador régio, desfazendo acintosamente o que estes faziam.
Naquele tempo davam-se conflitos que hoje não surgem, porque ele referia-se precisamente a épocas em que foram divididos os dois poderes, administrativo e do Ministério Público; como muitas atribuições não ficaram perfeitamente definidas, e hoje já o estão, é que então havia contínuos conflitos, e isso dava lugar a grandes embaraços para a vida administrativa e trazia em contínua confusão a vida dos concelhos.
Conheço as acusações de Garrett, a acção larga e muito discutível dos administradores durante o período constitucional, e conheço também as várias proezas que, na República, os administradores têm feito, pelas arbitrariedades que praticaram, pelas ilegalidades e abusos de vária ordem que fizeram, pelas fraudes verdadeiramente arbitrárias que praticaram, falsificando os recenseamentos eleitorais de tal forma que não podem manter-se e que tem de ser refeitos por completo, porque por eles não podem honestamente ser feitas eleições.
Mas, Sr. Presidente, não é por esta razão que eu não quero os administradores. Pela forma como alguns oradores têm falado dos administradores, parece que, as administrações são uma fonte de males, um aprendizado de vícios e uma escola de criminosos.
Conheço bem, através dos últimos anos do constitucionalismo, muitas cousas em que os chefes políticos, os ministros do reino e os governadores civis escolhiam homens sem escrúpulos, homens audaciosos, homens que apenas se salientavam pela força e pela coragem.
Mas não é por esta razão que eu não quero os administradores; não quero os administradores porque são apenas entidades que costumavam ser absolutamente amoldadas ao arbítrio amplo do ministério do reino e que agora o seriam ao do Interior.
Àqueles que vejo defender a existência do administrador tal como está, não lhe posso atribuir outra intenção senão aquela que tiveram os dirigentes políticos nos tempos passados, que era o criar cegos cooperadores em manejos partidários para fins eleitorais.
Não concordo também, Sr. Presidente, que as atribuições dos administradores passem para os presidentes das comissões executivas das câmaras municipais; e se a razão por que se condena a existência do administrador é simplesmente por ele ser uma entidade essencialmente política, por ser uma entidade sempre pronta a deixar-se manejar pelos seus superiores hierárquicos para interesses partidários, para influências políticas, para vencimentos de eleições, a mesma razão, com mais direito, pode e deve alegar-se contra a investidura dos presidentes das comissões executivas, pois que eles, provindo dum acto eleitoral, em que se criam despeitos, em que se levantam antipatias e até inimizades entre os elementos em luta, padecem, desde a origem, de pior mal do que os próprios administradores de concelho tradicionais.
Portanto esta nova entidade fica sendo ainda mais política do que os administradores de concelho.
É por isso, Sr. Presidente, que, não desejando que continuem os administradores de concelho, tais como estão, de livre e arbitrária nomeação e de livre e arbitrária demissão do poder central, eu entendia, e entendo ainda, sem esperanças de alterar a minha opinião e o meu modo de ver, que se estabelecesse uma magistratura de carreira para estes lugares. Em minha opinião devia haver acesso, por meio de concurso, desde os lugares de administrador de concelho até as mais altas posições de administração pública.
Isso seria um excelente tirocínio para o nosso pessoal administrativo, o qual, por tal processo, quando chegasse aos últimos postos teria perfeito conhecimento da vida administrativa em todos os seus graus.
Em alguns países, como a Inglaterra, por exemplo, obedece-se a este critério; e parece-me que não se administra mal em Inglaterra.» (2)
O Abade de Santa Maria de Padornelo seguia com olhos vigilantes os actos do governo, denunciava as injustiças, as arbitrariedades, os atropelos às regras e os casos obscuros que chegavam ao seu conhecimento. Era, por isso, um dos deputados mais resolutos e inabaláveis quanto aos princípios. «É ser bom republicano», dizia ele», fazer obra patriótica dentro da lei.» (3)
Deixou trabalho meritório nas Comissões de Finanças, Negócios Eclesiásticos, Obras Públicas e Orçamento. Em 1918, abandonou a Câmara de Deputados, alistou se voluntariamente no Corpo Expedicionário Português e foi Capelão Militar nas linhas da frente na grande guerra.


Notas

(1) Casimiro Rodrigues de Sá, Diário da Câmara dos Deputados, 9 de Maio de 1912
(2) Casimiro Rodrigues de Sá, Diário da Câmara dos Deputados, 7 de Maio de 1912
(3) Casimiro Rodrigues de Sá, Diário da Câmara dos Deputados, 12 de Março de 1912