março 26, 2013


Estamos em meados do século XX, quase nos tempos findos da II guerra mundial. Coura vivia em sobressaltos, sem informação e a que se conseguia ouvia-se pela rádio.
Já tinha passado o pesadelo da guerra civil de Espanha, que se revelava pelo barulho longínquo das armas de guerra e pelas mortes que covardemente aconteciam, e o futuro não se vislumbrava na linha do horizonte.
O remédio era mesmo emigrar. Partir para terras do Brasil, à procura de sucesso era o desejo que mais se inscrevia nos homens e mulheres deste tempo. E muitos da família Pacheco, com origem em Ferreira, fizeram-no.
Primeiro, foi o Abílio, que partiu na sua adolescência em direção ao Rio de Janeiro. Chegou, trabalhou e morreu. Ainda casou e deixou um filho que entretanto outro filho deixou, desconhecendo por inteiro as raízes de seu avô.
Em segundo, partiu Augusto, um exímio carpinteiro. Um verdadeiro gentleman, de finura no trato e carinhoso nas palavras de família.
A cidade do Rio de Janeiro ainda o reteve uma década, mas regressou para o seu ofício, com uma outra imagem do mundo, criando filhos, que também emigraram, mas agora para a Europa.
Por último, Amadeu. Fez-se emigrante por motivos políticos. Teve uma querela jurídica e, atempadamente, foi avisado, por voz amiga, que o melhor seria partir, para não ser apanhado nas malhas da Pide.
Assim o fez. Quase clandestinamente, chegou ao Rio de Janeiro e imediatamente começou a trabalhar, como carpinteiro, na ampliação do porto de mar. Passou anos e anos por ali, mas depois tornou-se operário de uma fábrica na Vila Isabel, mesmo ao lado do Maracanã.
A esposa logo apanhou um transoceânico e a vida deles deixou de ser courense. Também os dois filhos fizeram o mesmo percurso, partilhando o mesmo destino: partir para não mais voltar
Por Coura ficaram Arnaldo e Cândida, os restantes membros da família de José e Carlota. Estiveram sempre em contacto com os irmãos, mas a ligação foi-se tornando mais ténue, a não ser com Augusto, entretanto regressado às origens.
Receberam a notícia da morte dos irmãos e choraram na sua dor interior de uma família destroçada pela emigração. Sabiam como eram as suas vidas longínquas, trocavam cartas e fotografias e aproveitavam a Páscoa para reunir a família de Coura e saber novas de terras brasileiras.
Por isso, ainda considero que a Páscoa é um momento de confraternização, trazendo-me de volta a família da emigração, com tudo o que isso significa de dor silenciosa.

março 04, 2013


Saí de Tóquio em direção a Singapura e ainda fui a tempo de presenciar comemorações do novo ano chinês, em que o bairro de Village se encheu de barracas de comes e bebes, trazendo-me à memória o que acontece em Coura todos os anos, quando o largo da feira se enche de comida tradicional e se empanturra de vinho e cerveja.
Mesmo sendo um ponto de passagem, pois é um dos maiores centros distribuidores do mundo ao nível de passageiros aéreos e de contentores comerciais, Singapura tem uma beleza urbana que jamais se pode esquecer. É principesca nos seus edifícios e exibe os sinais de uma das sociedades mais organizadas que poderemos conhecer, apesar de ser uma democracia imperfeita, lembrando a frase que se utiliza para os tempos gregos de Péricles e companhia.          
E chego a Timor, mais concretamente a Díli, levando na bagagem a expetativa de saber como iria reencontrar a cidade depois da saída da quase maioria do pessoal da ONU e também do contingente da GNR. E Díli mudou imenso. Há menos circulação de carros oficiais, ou de jipes superprotegidos de pessoas bem pagas internacionalmente, continuando mesmo assim o trânsito frenético de motas e de táxis.
Desta vez, circulei muito pouco dentro da ilha. Apenas fui a Liquiçá e Maubara, numa visita rápida, pois as estradas, como diz o Snr. Félix – um dos homens mais simples de Timor e um dos mais teóricos da sabedoria popular -., estão cada vez mais preguiçosas, ou seja, com muitos obstáculos que as tornam lentas e quase imprevisíveis.
Depois da forte de Maubara, chamou-me a atenção um conjunto de campas brancas, moídas de sujidade pelo tempo. Aproximei-me e, amarguradamente, contei, na primeira fila, 12, e na 2ª fila, cinco. Li, em voz alta, os seus nomes, todos eles escritos em língua portuguesa, e confirmei a data da sua morte, a 6 e 17 de abril de 1999. Todos jovens, entre os 14 e 22 anos. Que dor de alma esta imagem de incompreensão humana, sobretudo quando se está perante alguém que lutou para ser livre, acreditando no entendimento entre as pessoas. Mais uma vez, socorri-me do conhecimento do Snr. Félix, que me informou que se tratou de dois massacres. Fico sem palavras e um arrepio percorre-me o corpo, impondo-me o máximo de respeito por estes jovens, cobardemente assassinados.
Torno a ler os seus nomes, agora, no meu silêncio de sofrimento, e fico distraidamente a olhar para as águas azuis de um mar calmo que se prolongava à minha frente.
Gostaria de ter ficado assim mais tempo, mas tive de voltar a Díli, já que as estradas estavam inundadas de uma chuva copiosa que caíra sem parar durante algumas horas.